Posted by : Angie Feb 13, 2022

 


            “Moonlight” é um filme escrito e dirigido por Barry Jenkins. A adaptação da obra “In Moonlight Black Boys Look Blue”, de Tarell Alvin McCraney, estreou em 2016, vencendo uma série de distinções por todo o mundo, nomeadamente o Óscar de Melhor Filme e o Óscar de Melhor Roteiro Adaptado, em 2017. A longa-metragem conta a história de autodescoberta de Chiron, um rapaz negro que vive em Miami, em 1980 – uma época que ficou marcada nos Estados Unidos da América pelo uso de drogas e vários tipos de violência associados a substâncias ilícitas. O filme está dividido em três partes distintas, que ilustram a jornada de vida de Chiron, explorando temáticas sociais, raciais e ligadas à sexualidade.

Poster de "Moonlight", filme de Barry Jenkins.

            “Little”, o primeiro arco da história, tem início com um enquadramento bastante simbólico. O carro azul de Juan (Mahershala Ali) é o primeiro objeto apresentado ao espectador. O automóvel, que simboliza o caminho e a viagem que está prestes a ser contada, é colorido de azul, uma cor presente ao longo de todo o filme e que, nesta história, remete para a realidade, verdade e genuinidade de cada pessoa. A câmera que acompanha Juan ao longo desta sequência movimenta-se de forma calma e suave, revelando, aos poucos, o ambiente à sua volta – um bairro nos subúrbios de Miami, onde acontece o tráfico de drogas. A forma como a própria câmera se desloca reflete a personalidade de Juan, um homem forte, destemido e confiante, que lidera toda a cena ao interagir com os jovens traficantes que trabalham para si.


            O tom altera-se quando a câmera acompanha uma criança que corre enquanto foge de um grupo de rapazes. A agitação e o desfoque da imagem refletem o medo e a insegurança que o menino sente até se refugiar no interior de uma casa abandonada. É neste momento que, lá fora, os bullies se fazem ouvir, “enchendo” a cabeça do rapaz de sons agudos e desconhecidos, transmitindo uma sensação de perigo para o público. É neste momento que Juan entra em cena. De início, a criança afasta-se do desconhecido, relutante e desconfiada, no entanto, o homem convence o menino a acompanhá-lo até um café, onde come uma refeição. A criança mantém uma postura defensiva durante toda a cena, aparecendo de cabeça baixa e em silêncio enquanto Juan tenta apurar informações sobre a sua identidade. Ao longo da cena, o enquadramento vai-se fechando cada vez mais, à medida que se aproxima das duas personagens, sendo que o plano individual de cada uma delas se vai alterando em cortes sucessivos, representando a falta de interação e intimidade entre os dois.

            É em casa de Juan que a personagem Teresa (Janelle Monáe) é apresentada, como uma jovem mulher simpática, responsável e amável. É na sua presença que a criança revela a sua identidade. O seu nome é Chiron (Alex Hibbert), no entanto, os rapazes da sua escola tratam-no como Little – nome que intitula a primeira parte do filme –, de forma depreciativa. É nesta cena que, pela primeira vez, o espectador ouve a voz de Chiron e conhece o seu nome – o facto de o público receber estas informações ao mesmo tempo que as outras personagens em cena, faz a audiência sentir-se dentro do próprio filme, criando uma sensação de imersão na história. É também neste momento que a câmera se começa a movimentar de forma mais fluída e contínua entre as várias personagens sentadas à volta da mesa, transmitindo a ideia de aproximação.

            Quando Juan leva Chiron até casa, o público conhece Paula (Naomie Harris), mãe do menino. Pelo seu discurso e postura, aquela não é a primeira vez que o rapaz desaparece ou passa a noite fora, revelando uma relação disfuncional entre os dois familiares. A mulher rejeita a ajuda de Juan e pede-lhe para se afastar do seu filho, revelando a grande necessidade de controlo sobre o pequeno Chiron, sem, no entanto, ter capacidades para tal. Este é o grande dilema de Paula ao longo do filme: a personagem navega entre ser uma boa mãe para o seu filho, enquanto lida com a dependência de drogas.

            Kevin (Jaden Piner) é o único amigo de Chiron. Numa cena onde o grupo de rapazes é apresentado, Chiron é avistado à parte, num plano isolado. No entanto, mais tarde, Kevin aproxima-se do menino, aconselhando-o a não se deixar intimidar pelos outros. Esta é a primeira interação de uma relação íntima entre as duas personagens.

            Segue-se uma das cenas mais simbólicas de todo o filme. Na praia, Juan ensina Chiron a nadar no mar. “Hey, I got you lil' man, I got you”, garante o homem mais velho enquanto enumera os passos à criança. No entanto, neste momento, Juan não está a ensinar Chiron apenas a nadar. Juan também o conforta, garantindo-lhe que estará ao seu lado para o resto da vida, auxiliando-o em tudo aquilo que for necessário. Nesta cena, a câmera está colocada à altura da água, fazendo com que o público se sinta presente no local, ao mesmo tempo que a banda sonora de Nicholas Britell se intensifica, exponenciando o valor simbólico de toda a sequência. O momento demonstra também a complexidade da personagem de Juan: para além de ser o líder destemido de uma rede de tráfico de droga, consegue também ser uma figura paternal com uma certa vulnerabilidade. A cena continua fora de água, onde Juan conta, com o som de fundo da maré e da brisa do mar: “This one time... I ran by this old, old lady (…) In moonlight’ she say, ‘black boys look blue. You blue,’ she say.” É este o diálogo que dá título ao filme e serve de mote para toda a história. Na realidade, a luz do luar e a cor azul significam ser verdadeiro, sincero e genuíno. Este é o grande desejo e debate interno de Chiron, assim como das outras personagens durante toda a longa-metragem.


            A segunda parte de “Moonlight”, “Chiron”, apresenta a personagem principal na fase da adolescência. É em casa de Teresa que se percebe que, durante o time jump entre os dois arcos, Juan morreu, pelo que o principal apoio emocional do jovem Chiron (Ashton Sanders) já não se encontra presente, o que faz com que o adolescente se sinta cada vez mais desorientado e perdido. É durante uma troca de palavras com Teresa que o jovem explica que não quer ser mais tratado pelo nome de Little, pelo que a mulher responde: “(…) you right, that ain’t no name for you no more. That ain’t you. But if you wanna be somethin’ different, you gotta earn it, you gotta make your name true, understand?” Com isto, Teresa quer dizer que, de forma a fazer jus ao seu nome, Chiron deve demonstrar a pessoa que realmente é, sem ter medo do que aqueles à sua volta possam achar. Para além de intitular o segundo arco da história, esta ideia surge na sequência de que Juan era o principal confidente do jovem. Neste momento, parece que Teresa continua o legado deixado pelo seu companheiro.

            Paula volta a ser encontrada quando Chiron regressa a casa. Nesta cena, aquilo que a câmera mostra não está sincronizado com o áudio que é ouvido. Ou seja, o plano mostra o rosto da mãe do jovem a sorrir, no entanto, a sua voz sobrepõem-se ao que é visto, demonstrando o estado mental da personagem – claramente embriagada e drogada. A sequencia prossegue para Paula a extorquir dinheiro ao próprio filho, num ato de desespero e violência emocional e física. O posicionamento da câmera entre os dois atores dá a sensação de que o espectador está fisicamente presente no local com as duas personagens, tornando a discussão encenada bastante realista.

            Desamparado, Chiron refugia-se onde se sente realmente confortável: na praia. É à noite, debaixo do luar e junto ao mar, enquanto ouve a maré e a brisa do oceano, que o jovem reencontra o seu amigo Kevin (Jharrel Jerome). Os dois conversam sobre a brisa: “Sometimes round the way, where we live, you can catch this same breeze. It come through the hood and it’s like everything stop for a second ‘cause everybody just wanna feel it. Everything just get quiet, you know?”, afirma Kevin, seguido por Chiron: “And its like all you can hear is your own heartbeat, right?”. Os dois rapazes partilham as suas inseguranças porque, no fundo, sentem-se confortáveis um com o outro. Chiron chega mesmo a dizer: “I cry so much sometimes I think one day I’m gone just turn into drops.”, revelando a sua vulnerabilidade para Kevin. É neste seguimento que os dois partilham um momento mais íntimo e a personagem principal tem a sua primeira experiência sexual. É de notar que toda a transparência e genuinidade demonstrada ao longo desta sequência ocorre sobre a luz do luar, a luz azul, que remete para o mote inicial de todo o filme – ser genuíno e estar em sintonia com a nossa realidade.


            A narrativa continua a desenrolar-se, desta vez com a ajuda dos bullies de Chiron, que obrigam Kevin a espancar o seu melhor amigo. As agressões ocorrem à luz do dia, no pátio da escola, onde todos os alunos estão presentes. Quando Chiron é espancado pelo grupo de rapazes, a câmera fica desfocada e o som desaparece por completo. De certa maneira, é neste momento que a personagem de Chiron “morre”, sendo substituída por uma nova versão do rapaz. Versão essa que, consumida pelas suas emoções, é responsável por agredir Terrel (Patrick Decile) com uma cadeira no interior da sala de aula.

            O último arco da história tem o nome de “Black”. É assim que, enquanto adulto, Chiron (Trevante Rhodes) é conhecido nas ruas. Fisicamente mais forte e bastante semelhante a Juan, Chiron lidera uma rede de tráfico de droga, exercita o seu corpo para reprimir as suas emoções, vive sozinho e mantem uma relação afastada com a sua mãe abusiva. Ao longo dos diálogos, é revelado que, durante o time jump entre a segunda e a terceira parte do filme, Chiron foi preso por agredir o seu próprio agressor. Depois de cumprir a sua pena, o caminho trilhou-se de forma automática para as ruas da cidade. Parece que, no fundo, a pequena criança tornou-se naquilo que mais temia, reprimindo, ao mesmo tempo, a sua verdadeira essência, a mesma que a sociedade teima em não aceitar. No entanto, tudo parece mudar numa noite em que Chiron recebe a chamada de um velho conhecido. Do outro lado da linha, a voz de Kevin faz-se ouvir ao mesmo tempo que a expressão facial e a postura corporal de Chiron se transformam, passando de um tom mais ereto e rijo para uma forma mais emocional e vulnerável, à medida que o plano se vai fechando no rosto do ator, transmitindo todas as sensações para a audiência.

            A última vez que Paula surge na película revela uma faceta completamente diferente daquela explorada até então. Agora a viver num centro de reabilitação, a mãe de Chiron mostra-se arrependida e magoada com o passado e com todo o sofrimento que causou ao próprio filho: “I messed up baby. I fucked it all up, I know that. But yo’ heart ain’t gotta be black like mine, you hear me? I love you baby. I do, I love you Chiron. You ain’t gotta love me, lord knows I didn’t have love for you when you needed it, I know that. So you ain’t gotta love me but you gon’ know that I love you, you hear?” Esta é uma das cenas mais marcantes da longa-metragem, graças à performance apresentada pelos dois atores, responsáveis por transmitirem todas as emoções necessárias para o público que, sem se aperceber, sente que está, de facto, presente no mesmo local que as personagens. Os ângulos por cima dos ombros e os planos fechados, próximos dos rostos das personagens, também ajudam a criar o efeito de proximidade e contacto com a audiência.Esta é também a tentativa de Paula se redimir ao próprio filho, maltratado e abandonando durante grande parte do seu crescimento. No entanto, a mulher acredita que Chiron possa ser melhor que ela, melhor do que aquilo em que ele se transformou enquanto “Black”.


            A história segue e Chiron faz-se à estrada, viajando em direção a Kevin (André Holland), que o recebe no seu próprio restaurante. Quando os dois homens cruzam olhares pela primeira vez depois de longos anos sem se verem, a imagem volta a ficar desconcertada com o áudio emitido, revelando o choque e a hipnose sentidas por ambos. Os dois percebem que estão diferentes e demonstram surpresa relativamente aos rumos tão distintos que as suas vidas levaram. Se, por um lado, Chiron foi preso e se tornou num chefe de tráfico de droga, Kevin teve um filho e abriu o seu próprio restaurante. No entanto, apesar de todas as alterações nas suas vidas, a intimidade e a segurança que antigamente sentiam um com o outro parece continuar presente tanto tempo depois. À pergunta de Kevin “You remember the last time I saw you?”, Chiron responde “For a long time, tried not to remember. Tried to forget all those times. The good... the bad. All of it.”, confessando que, por mais que tentasse fugir do passado, ele arranjava sempre uma forma de voltar para si, tal como naquele momento, onde voltava a reencontrar o seu velho amigo. É então que, finalmente, o protagonista do drama deixa o seu escudo de proteção cair, revelando num nível máximo de vulnerabilidade “You’re the only man who’s ever touched me.”, enquanto, no fundo, ondas do mar se voltam a fazer ouvir, acompanhadas pela brisa do oceano – a representação da luz do luar e da cor azul, ambos símbolos de honestidade e genuinidade. Os dois homens adultos acabam por cair nos braços um do outro, apoiando-se e auxiliando-se entre si, deixando os seus verdadeiros sentimentos saírem, finalmente, em liberdade. Parece que, por fim, “Little”, “Chiron” e “Black” se encontraram a si mesmos. Esta última cena da película é bastante curiosa. Apesar de se ouvir a maré do oceano, que simboliza a verdadeira identidade de cada pessoa, e de, finalmente, Chiron se entregar a Kevin, a iluminação do local é bastante escassa, quase escura. Parece que, apesar da personagem principal ter revelado a sua vulnerabilidade e os seus sentimentos genuínos, se continua a esconder do resto do mundo, tal como aconteceu durante toda a sua vida.


            O último plano da longa-metragem revela Chiron em criança, voltado para o mar e de costas para a câmera. A tela é pintada de azul, à medida que a brisa da maré se continua a ouvir e o pequeno rapaz se vira, observando o próprio público, como se estivesse a questionar “E tu? Qual é o teu verdadeiro eu?”.


            “Moonlight” é uma obra de arte altamente simbólica, subjetiva e introspetiva. A densa narrativa completa-se com os diálogos ricos e profundos entre personagens que apresentam várias camadas e, apesar de serem fictícias, graças ao alto desempenho de todo o elenco, se tornam reais e genuínas, engolindo o público para o interior da narrativa. Esta não é uma história sobre a dependência de drogas, a homossexualidade, a pobreza, o bullying ou os maus-tratos familiares. É uma história sobre o próprio crescimento individual e como as várias fases da vida se sucedem e influenciam umas às outras, quer por motivos externos ou por razões internas.

                                                       Nota: ⭐⭐⭐⭐


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